Relator Especial das Nações Unidas (ONU) sobre a Proteção e Promoção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, e Relatora Especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a Liberdade de Expressão
Declaração Conjunta sobre Programas de Vigilância e seu Impacto na Liberdade de Expressão
21 de junho de 2013 – Diante dos acontecimentos relacionados à divulgação de programas secretos de vigilância destinados à luta contra o terrorismo e à defesa da segurança nacional, que poderiam prejudicar severamente o direito à liberdade de pensamento e expressão e o direito das pessoas à intimidade, o Relator Especial das Nações Unidas (ONU) sobre a Liberdade de Opinião e Expressão e a Relatora Especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA para a Liberdade de Expressão consideram necessário trazer à atenção uma série de princípios jurídicos internacionais sobre a matéria.
Nos dias recentes, tornou-se conhecido o alcance de alguns programas de vigilância da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, em sua sigla em inglês) sobre metadados de comunicações telefônicas e conteúdos de informações digitais. De acordo com as informações disponíveis, tais programas estão amparados pela Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (FISA, na sigla em inglês) e pela Lei Patriota (Patriot Act), contam com supervisão de uma corte independente que opera de modo sigiloso e estão submetidos ao controle reservado de comitês especiais do Congresso dos Estados Unidos. Porém, como se mencionará adiante, as informações disponíveis sobre o alcance desses programas ressaltam os riscos que a sua implementação gera para o direito à intimidade e à liberdade de pensamento e expressão das pessoas, assim como para a necessidade de revisar a legislação correspondente e estabelecer maiores mecanismos de transparência e discussão pública de tais práticas.
Ao mesmo tempo, de acordo com as informações compiladas em relatórios temáticos e de país das relatorias especiais, autoridades de outros Estados americanos, amparados por leis de inteligência, ou à margem da regulação legal existente, teriam interceptado as comunicações de particulares, em muitos casos com critérios ou finalidades políticas, e, inclusive, teriam difundido as mesmas em massa, sem autorização de seu titular, em meios de comunicação estatais. Os relatores especiais também puderam estar a par de importantes avanços nas investigações judiciais de alguns desses casos de espionagem ilegal.
Nesse contexto, os relatores especiais reiteram sua preocupação com a existência de programas e práticas de segurança que possam gerar um sério prejuízo aos direitos à intimidade e à liberdade de pensamento e expressão. Como consequência, instam as autoridades correspondentes a revisar a legislação pertinente e modificar suas práticas, com a finalidade de assegurar sua adequação aos princípios internacionais em matéria de direitos humanos. Para efeitos de recordar sua doutrina nesta área e auxiliar os Estados no cumprimento de suas obrigações legais internacionais correspondentes, os relatores especiais decidiram elaborar e difundir a presente Declaração Conjunta, contendo os princípios básicos de Direito Internacional que servem para orientar o desenho e a implementação dos programas de vigilância destinados à luta contra o terrorismo e à defesa da segurança nacional.
A importância de garantir a segurança nacional mantendo-se em conformidade com os padrões internacionais em matéria de direitos humanos
1. Em seus diversos relatórios e declarações, os relatores especiais têm indicado, compilando as apreciações de outros órgãos internacionais de direitos humanos, que o terrorismo é uma ameaça clara e significativa contra a proteção dos direitos humanos, a democracia, a paz e a segurança regionais e internacionais. A partir de sua obrigação de garantir às pessoas o exercício livre de seus direitos, os Estados têm adotado medidas de diferentes naturezas para prevenir e contra-arrestar o terrorismo, incluindo a formulação de leis e procedimentos internos para prevenir, investigar, julgar e punir essas atividades, e a negociação de tratados multilaterais sobre cooperação entre os Estados na luta contra o terrorismo.
2. Ao terem iniciativas para prevenir e contra-arrestar atividades terroristas, os Estados devem cumprir suas obrigações internacionais, incluindo as assumidas dentro dos marcos do direito internacional dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. As relatorias especiais têm avaliado em relatórios prévios sobre países e em relatórios temáticos e declarações conjuntas, as implicações para a liberdade de expressão das iniciativas antiterroristas adotadas pelos Estados. Nesse sentido, têm sublinhado de modo sistemático que o respeito irrestrito pelo pleno gozo dos direitos humanos, ou dos direitos que não tenham sido legitimamente suspensos em situações de emergência, deve ser parte fundamental de qualquer estratégia antiterrorista.
3. Em seu recente relatório sobre vigilância de comunicações e suas implicações para o exercício dos direitos à privacidade e à liberdade de expressão (A/HRC/23/40) o Relator Especial das Nações Unidas (ONU) sobre a Proteção e Promoção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão reconhece que a proteção da segurança nacional pode fundamentar o uso excepcional de vigilância nas comunicações privadas. Contudo, é fundamental compreender que, dado o caráter dinâmico dos avanços na internet e na tecnologia das comunicações em geral, esse tipo de vigilância pode constituir um ato particularmente invasivo que prejudica seriamente o direito à privacidade e à liberdade de pensamento e expressão.
4. De fato, nos anos recentes, a tecnologia disponível aos Estados para captar e monitorar comunicações privadas modificou-se vertiginosamente. A internet tem criado oportunidades sem precedentes para a livre expressão, comunicação, busca, posse e intercâmbio de informações. Com isso, facilitou-se o desenvolvimento de grandes quantidades de dados a respeito das pessoas, incluindo, entre outros, sua localização, suas atividades on-line e com quem elas se comunicam. Toda essa informação, manuseada em arquivos, acessível e sistematizável, pode ser altamente reveladora. Por isso, o seu uso por parte das agências policiais e de segurança, em programas de vigilância destinados à luta contra o terrorismo e à defesa da segurança nacional, aumentou sem uma regulação adequada na maioria dos Estados em nossa região.
5. É preocupante que a legislação em matéria de inteligência e segurança tenha permanecido inadequada frente aos desenvolvimentos das novas tecnologias na era digital. Preocupam de modo especial os efeitos intimidantes que o acesso indiscriminado a dados sobre as comunicações das pessoas possa gerar para a livre expressão do pensamento, a busca e a difusão de informações nos países da região.
6. Há uma necessidade urgente de que os Estados revisem sua legislação para estabelecer os limites ao poder de vigiar as comunicações privadas, sua necessidade e proporcionalidade, em conformidade com os direitos das pessoas e os princípios de direito internacional que foram compilados, entre outros lugares, no relatório sobre vigilância de comunicações e suas implicações para o exercício dos direitos à privacidade e à liberdade de expressão (A/HRC/23/40) do Relator Especial das Nações Unidas sobre a Proteção e Promoção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão e no relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA/Ser.L/V/ll.116 Doc. 5 rev. 1 corr).
A necessidade de restringir os programas de vigilância
7. Os direitos à privacidade e à livre circulação do pensamento e informação são protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem reconhecem expressamente o direito de toda pessoa, sem discriminação, a manifestar livremente seu pensamento, a buscar e receber informações de toda natureza. Do mesmo modo, proíbem ingerências arbitrárias ou abusivas na vida privada, incluindo as comunicações, estabelecendo também o direito à proteção pelo Estado contra esse tipo de ingerências.
8. Em conformidade com os parágrafos anteriores, os Estados devem garantir que a intervenção, compilação e uso de informações pessoais, incluindo todas as restrições ao direito da pessoa prejudicada a acessar informações sobre as mesmas, sejam autorizados de modo claro pela lei, a fim de proteger a pessoa contra interferências arbitrárias ou abusivas em seus interesses privados. A lei deverá estabelecer limites em relação à natureza, ao alcance e à duração desses tipos de medidas, as razões para ordená-las, as autoridades competentes para autorizá-las, executá-las e supervisioná-las, e os mecanismos legais para a sua contestação.
9. Dada a importância do exercício desses direitos para o sistema democrático, a lei só deve autorizar o acesso às comunicações e a dados pessoais nas circunstâncias mais excepcionais definidas na legislação. Quando se invocar a segurança nacional como razão para vigiar a correspondência e os dados pessoais, a lei deve especificar com clareza os critérios que devem ser aplicados para determinar os casos nos quais esse tipo de restrições é ilegítimo. Sua aplicação só deverá ser autorizada quando existir um risco claro em relação aos interesses protegidos, e quando esse dano for superior ao interesse geral da sociedade de proteger o direito à privacidade e à livre expressão do pensamento e à circulação de informações. A entrega dessas informações deve ser monitorada por um organismo de controle independente e contar com garantias suficientes de devido processo e supervisão judicial, dentro das restrições permissíveis em uma sociedade democrática.
10. A vigilância das comunicações e as ingerências sobre a privacidade que excedam o estipulado na lei, que se orientem a finalidades diferentes das por ela autorizadas, ou as que se realizarem de modo clandestino, devem ser drasticamente punidas. Tais ingerências ilegítimas incluem as que ocorram por motivos políticos contra jornalistas e meios de comunicação independentes.
11. As empresas que proveem serviços de comunicações por meio da internet, de publicidade ou outros serviços relacionados, devem se esforçar para assegurar o respeito aos direitos de seus clientes à proteção de seus dados e a usar a internet sem interferências arbitrárias. Essas empresas são incentivadas a trabalhar de forma conjunta para resistir a tentativas de execução de programas de vigilância massiva em oposição aos princípios aqui estabelecidos.
Deveres de publicidade e transparência
12. Toda pessoa tem direito a acessar informações sob o controle do Estado. Este direito inclui as informações relacionadas à segurança nacional, exceto nas exceções precisas estipuladas pela lei, sempre que elas forem necessárias em uma sociedade democrática. As leis devem assegurar que o público possa acessar as informações sobre os programas de vigilância de comunicações privadas, seu alcance e os controles existentes para garantir que eles não possam ser usados de modo arbitrário. Em consequência, os Estados devem difundir, ao menos, informações relacionadas ao marco regulatório dos programas de vigilância; os órgãos encarregados de implementar e supervisionar tais programas; os procedimentos de autorização, de seleção de objetivos e de manuseio de dados, assim como informações sobre o uso dessas técnicas, incluindo dados agregados sobre seu alcance. Em todo caso, os Estados devem estabelecer mecanismos de controle independentes capazes de assegurar transparência e prestação de contas sobre esses programas.
13. O Estado deve permitir que os provedores de serviços informem seus clientes a respeito dos procedimentos que eles implementam em resposta a solicitações de vigilância do Estado, e fornecer, ao menos, informações agregadas sobre o número e o alcance das solicitações que recebem. Nesse contexto, os Estados devem fazer esforços para aumentar a consciência das pessoas sobre seus direitos e sobre o funcionamento das novas tecnologias de comunicações, de modo que possam determinar, manusear, mitigar e adotar decisões informadas em relação ao seu uso.
14. O Estado tem a obrigação de divulgar de modo amplo as informações sobre programas ilegais de vigilância de comunicações privadas. Esta obrigação deve ser cumprida sem prejuízo para o direito à informação pessoal de quem tenha sido prejudicado. Em todo caso, os Estados devem realizar investigações exaustivas para identificar e punir os responsáveis por esse tipo de práticas, e informar de modo oportuno às pessoas que possam se tornar vítimas das mesmas.
Proteção diante de sanções ulteriores pela divulgação de informação sigilosa
15. Em nenhuma circunstância, os jornalistas, integrantes de meios de comunicação ou membros da sociedade civil que tenham acesso e difundam informação sigilosa sobre esse tipo de programas de vigilância, por considerá-la de interesse público, podem ser submetidos a sanções ulteriores. Nesse mesmo sentido, as fontes confidenciais e materiais relacionadas à divulgação de informação sigilosa devem ser protegidas pela lei. Os mecanismos jornalísticos de autorregulação têm contribuído de modo significativo para o desenvolvimento de boas práticas sobre como abordar e comunicar temas complexos e sensíveis. Os jornalistas devem ser especialmente responsáveis ao reportar informações relacionadas a terrorismo e segurança nacional. Os seus códigos de ética são de utilidade para alcançar esse propósito.
16. Como já manifestaram repetidas vezes os relatores especiais, a pessoa vinculada ao Estado, que, tendo a obrigação legal de manter a confidencialidade sobre certas informações, divulgue ao público os conteúdos que de modo razoável considere como evidências do cometimento de violações de direitos humanos ("whistleblowers"), não deve ser objeto de sanções legais, administrativas ou trabalhistas, sempre que tenha atuado de boa fé, em conformidade com os padrões internacionais sobre a matéria.
17. Qualquer tentativa de impor sanções ulteriores contra quem revelar informações sigilosas deve se fundamentar em leis previamente estabelecidas, aplicadas por órgãos imparciais e independentes, com garantias plenas de devido processo, incluindo o direito de recorrer da sentença. A imposição de sanções penais deve ser excepcional, sujeita a limites estritos de necessidade e proporcionalidade.