2014
DECLARAÇÃO CONJUNTA SOBRE UNIVERSALIDADE E O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O Relator Especial das Nações Unidas (ONU) sobre a Liberdade de Opinião e Expressão, a Representante da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) para a Liberdade dos Meios de Comunicação, a Relatora Especial da OEA para a Liberdade de Expressão e a Relatora Especial da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação,
Tendo analisado as presentes questões conjuntamente com a colaboração da organização ARTIGO 19, Campanha Mundial pela Liberdade de Expressão (ARTICLE 19, Global Campaign for Free Expression) e do Centro para o Direito e a Democracia (Centre for Law and Democracy);
Recordando e reafirmando nossas Declarações Conjuntas de 26 de novembro de 1999, 30 de novembro de 2000, 20 de novembro de 2001, 10 de dezembro de 2002, 18 de dezembro de 2003, 6 de dezembro de 2004, 21 de dezembro de 2005, 19 de dezembro de 2006, 12 de dezembro de 2007, 10 de dezembro de 2008, 15 de maio de 2009, 3 de fevereiro de 2010, 1º de junho de 2011, 25 de junho de 2012 e 4 de maio de 2013;
Ressaltando, uma vez mais, a importância fundamental da liberdade de expressão em si mesma e como uma ferramenta essencial para a defesa de todos os demais direitos, como elemento central da democracia e condição indispensável para impulsionar os objetivos de desenvolvimento;
Reconhecendo a natureza universal da liberdade de expressão, que se mostra por meio da sua inclusão em tratados e padrões internacionais e regionais de direitos humanos, bem como em constituições nacionais, na ampla adoção pelos Estados do sistema democrático de governo, com base na liberdade de expressão, e no reconhecimento da liberdade de expressão como um valor humano central em todas as principais tradições culturais, filosóficas e religiosas do mundo;
Atentos ao fato de que, no contexto da liberdade de expressão, a universalidade implica para os Estados tanto no dever de se abster de restringir indevidamente este direito, quanto na obrigação positiva de assegurar que todas as pessoas e grupos da sociedade possam exercer esse direito sem discriminação em termos de obter e receber informações, e de compartilhar informações e ideias;
Conscientes de que, quando ocorrem ataques à liberdade de expressão, estes com frequência são uma primeira advertência de que todos os direitos humanos estão em risco e de que há uma deterioração da situação de segurança;
Recordando o caráter fundamental da liberdade de expressão, posto que possibilita o desenvolvimento sustentável e a vigência de instituições públicas efetivas, transparentes, democráticas e com prestação de contas;
Preocupados com as frequentes tentativas de justificar violações à liberdade de expressão, muitas vezes com fins nitidamente políticos, invocando para isso determinados valores culturais, tradicionais ou da comunidade, crenças morais ou religiosas, ou supostas ameaças à segurança nacional ou à ordem pública;
Sumamente alarmados com as ocasiões em que se impede que minorias e outros grupos que sofreram discriminação ao longo da história possam exercer de modo pleno o seu direito à liberdade de expressão e que, por causa disso, continuam sendo marginalizados do âmbito político, econômico, cultural e social;
Considerando que a liberdade de expressão, somada ao direito a não ser objeto de discriminação, que constitui um direito humano irrevogável, protege o direito de todas as pessoas e grupos da sociedade a expressar opiniões diferentes, incluindo as radicalmente diferentes, das opiniões das maiorias, sempre que não transgridam as restrições legítimas à liberdade de expressão, como por exemplo, as relativas à incitação ao ódio;
Enfatizando que é inerente à natureza e à importância preponderantes dos direitos humanos que estes requeiram a reforma ou a anulação de leis, regulamentações, costumes e práticas que resultem em discriminação ou em outras formas de violações de direitos humanos, e observando que isso se reflete em numerosas declarações fundamentais sobre direitos humanos, incluindo a Declaração e o Programa de Ação de Viena de 1993, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência;
Lembrando o importante papel positivo que o debate público sobre diferentes culturas, valores, tradições, crenças e práticas pode ter para a promoção do entendimento e da paz, e para combater o ódio, a discriminação e a violência;
Adotamos em 6 de maio de 2014 em Paris a seguinte Declaração Conjunta sobre Universalidade e o Direito à Liberdade de Expressão:
1. Recomendações aos Estados
- Os Estados devem adotar medidas positivas para assegurar o exercício efetivo e sem discriminação por todas as pessoas e grupos da sociedade do seu direito à liberdade de expressão. As medidas concretas necessárias variam de um Estado para o outro; porém, as seguintes devem ser consideradas:
- Fortalecer a obrigação dos meios públicos de radiodifusão de atender as necessidades de informação e expressão de diferentes indivíduos e grupos da sociedade, e promover o entendimento e a tolerância na sociedade.
- Criar e habilitar um marco jurídico para meios de comunicação comunitários, para que eles possam, entre outras coisas, atender as necessidades de comunicação e expressão de diferentes indivíduos e grupos.
- Prestar assistência, seja financeira ou regulamentar, aos meios de comunicação ou aos seus conteúdos – por exemplo, em certos formatos ou idiomas – que atendam a necessidade de receber informação e manifestar-se de diferentes indivíduos e grupos.
- Em geral, adotar um marco legal e regulatório que promova os direitos de diferentes pessoas e grupos ao acesso e uso de meios e tecnologias digitais para difundir os seus próprios conteúdos e receber conteúdos relevantes produzidos por terceiros.
- Os Estados devem realizar ações concretas e efetivas para modificar ou eliminar estereótipos, práticas e preconceitos nocivos, incluindo valores ou práticas tradicionais ou consuetudinárias que depreciem a possibilidade de todas as pessoas e grupos na sociedade exercerem o direito à liberdade de expressão.
- Os Estados não devem aplicar restrições à liberdade de expressão, a menos que cumpram os requisitos mínimos para tais restrições em conformidade com o direito internacional, incluindo a condição de que elas respeitem os padrões de legalidade (previstos pela legislação), contribuam a algum dos fins legítimos reconhecidos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e sejam necessárias e proporcionais.
- Os Estados têm certo grau de flexibilidade, de acordo com o direito internacional, para decidir sobre a necessidade, e, em cada caso, o modo de restringir a liberdade de expressão com vistas a proteger objetivos legítimos, ao mesmo tempo em que respeitam os padrões acima, inclusive refletindo suas próprias tradições, culturas e valores. O direito internacional também reconhece que as diferentes situações enfrentadas pelos Estados em particular podem merecer diferentes abordagens quanto a eventuais restrições da liberdade de expressão. Nenhuma dessas variações deprecia de modo algum o princípio da universalidade da liberdade de expressão, e as restrições a essa liberdade em nenhum caso devem significar uma imposição, por determinados grupos, de suas tradições, cultura e valores sobre os dos outros.
- Existe um núcleo de liberdade de expressão em relação ao qual os Estados não têm qualquer poder, ou só possuem uma capacidade extremamente limitada de adotar restrições com vistas a considerar as tradições, a cultura e os valores locais, incluindo em particular o discurso político em sentido amplo, tendo em vista o caráter transcendental desse discurso para a democracia e o respeito a todos os direitos humanos. Isso também implica que as figuras públicas devem aceitar um maior grau de escrutínio pela sociedade.
- Alguns tipos de restrições legais à liberdade de expressão jamais poderão ser justificadas tendo como referência as tradições, a cultura e os valores locais. Onde essas restrições existam, elas deverão ser derrogadas, e as pessoas que tenham sido punidas em função das mesmas deverão ser absolvidas por completo e receber um ressarcimento adequado pela violação de seus direitos humanos. Tais restrições incluem:
- Leis que protegem religiões contra a possibilidade de crítica ou proíbem a expressão de crenças religiosas diferentes.
- Leis que proíbem o debate de temas relevantes ou do interesse de minorias e de outros grupos historicamente discriminados, ou que proíbam expressões que constituam um elemento da identidade ou dignidade pessoal desses indivíduos e/ou grupos.
- Leis que protejam de modo especial funcionários, instituições, figuras históricas ou símbolos nacionais ou religiosos contra a possibilidade de crítica.
- Em particular, e de acordo com as circunstâncias locais, os Estados devem se dedicar a combater – incluindo a criação de programas para deter – a discriminação histórica, os preconceitos e as atitudes tendenciosas que impeçam o gozo igualitário do direito à liberdade de expressão por certos grupos.
- Em função do alcance global e da efetividade da internet, bem como do seu relativo poder e sua acessibilidade em comparação a outras plataformas de comunicação, este meio desempenha um papel chave em possibilitar a universalidade da liberdade de expressão. Nesse contexto, aplicam-se os seguintes princípios:
- O direito à liberdade de expressão, que não reconhece fronteiras, protege a internet do mesmo modo como protege outras formas de comunicação.
- As eventuais restrições à liberdade de expressão na internet e em outras tecnologias digitais devem ser efetuadas com a máxima cautela, tendo em vista que essas ações em uma jurisdição poderiam ter repercussões em outras jurisdições.
- Os Estados devem promover ativamente o acesso universal à internet sem distinção política, social, econômica ou cultural, entre outras formas, respeitando os princípios de neutralidade da rede e o caráter central dos direitos humanos para o desenvolvimento da internet.
2. Recomendações para outros atores
- Os organismos internacionais, regionais e nacionais de direitos humanos devem monitorar e adotar medidas para enfrentar restrições à liberdade de expressão que pretendam se justificar invocando tradições, práticas, culturas e/ou valores específicos, bem como situações nas quais determinados grupos enfrentem obstáculos sistemáticos à sua capacidade de exercer o direito à liberdade de expressão na prática.
- A comunidade internacional – incluindo organismos intergovernamentais e Estados individuais – deve adotar medidas para fomentar um diálogo e um debate mais ativos sobre esses temas, de modo a promover um maior entendimento e colaboração que possibilitem o respeito universal à liberdade de expressão.
- Os meios de comunicação devem desempenhar um papel positivo combatendo a discriminação, os estereótipos, os preconceitos e as atitudes tendenciosas, o que inclui alertar sobre os perigos que os mesmos implicam; devem aspirar aos mais elevados padrões profissionais e éticos, tratar de temas relevantes para as minorias e oferecer aos seus membros uma oportunidade de se expressar e de ser escutados.
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Frank La Rue
Relator Especial da ONU sobre Liberdade de Opinião e Expressão
Dunja Mijatović
Representante da OSCE para a Liberdade de Imprensa
Catalina Botero Marino
Relatora Especial da OEA para a Liberdade de Expressão
Faith Pansy Tlakula
Relatora Especial da CADHP sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação